Cineasta de prestígio internacional, escritora e ativista social nascida na Baixada Fluminense, artista assume antiga paixão pela fotografia, sem fugir da motivação social e avessa ao discurso da meritocracia
“A maturidade me trouxe a consciência de que não estar retratada nesse mundo de beleza das fotografias de paisagem, não é por incompetência minha, nem de ninguém da minha cor, mas que eu posso sim incluir meu mundo, meu olhar e meu povo no universo belo que a natureza nos oferece. Esse é o foco da minha fotografia, retratar e ter retratado a beleza de um mundo onde o povo negro está incluído, seja dentro do quadro ou atrás da câmera.” Sil Azevedo
Filha da Baixada Fluminense, nascida em Japeri, a cineasta, escritora e ativista social Sil Azevedo teve sua história contada há três anos, quando lançou seu livro “Filho de Prostituta”, uma coletânea de 28 textos, selecionados pela autora, que traduzem dores e dificuldades enfrentadas dos 15 aos 42 anos: autonegação, solidão, preconceitos vividos pela jovem negra homossexual. Desta vez, a cineasta de prestígio internacional assume por definitivo uma antiga “paixão platônica”, a fotografia, e lança diversos registros exuberantes organizados em coleções, disponíveis em seu próprio site, realçando através de imagens o seu peculiar olhar para paisagens e personagens, sem fugir da temática social, tão presente em suas criações.
Premiada internacionalmente enquanto cineasta de forte cunho social – em 2009, sua produção “Future Filmmakers Project”, sobre quatro meninos confinados em um reformatório para menores, foi premiado em Nova Iorque como melhor documentário; e, em 2011, a premiação do seu documentário “The Journey”, sobre imigrantes ilegais durante o governo de Barack Obama – e também de prêmios nacionais – seu curta-metragem “Enquanto Canto” foi vencedor em cinco festivais brasileiros de cinema e duas vezes selecionado para festivais internacionais em 2017 – a multiartista investe agora também no segmento da “Fotografia para decoração”, no ideal de tornar ambientes residenciais mais interessantes e harmoniosos, sintonizados com design de interiores, na linha dos “espaços de saúde mental”, com utensílios simples e acessíveis a qualquer pessoa: “um quadro de fotografia que traga um pouco de luz e suavidade ao ambiente, para que qualquer um que trabalhe a semana inteira, tenha um espaço dentro da própria casa em que possa relaxar e se energizar para enfrentar a rotina sem estresse”, explica Sil.
A coleção “Território Diaspórico” busca descolonizar o olhar, com fotos de pessoas negras inseridas em paisagens exuberantes, fugindo totalmente da ideia do exótico – ou da maneira que o negro costuma ser apresentado dentro do conceito de beleza artística – e sim com o objetivo de “inserir o negro dentro do que se tem de mais bonito no planeta, como um representante natural da beleza daquele espaço, espaço esse, que nos pertence por direito”, revela a fotógrafa. “Minha fotografia é uma representação do mundo que busco, uma porta que me conduz a lugares e sensações que quero eternizar, onde enquadro apenas a minha percepção do que é essencial à vida”. De fato, suas fotos representam a natureza na sua essência, sem interferência ou mutação artística nos temas abordados, realçando leveza, brilho, harmonia e aquela forma de beleza que não agride, nem compete, apenas foca na simplificação dos elementos e na naturalidade das cores, linhas e paisagens.
A paixão pela fotografia
A menina que se encantava sempre ao se deparar com calendários de parede – única forma de “foto para decoração de interiores” possível para uma jovem de comunidade pobre como a de Japeri – percebia que as imagens eram sempre de lugares distantes, belas paisagens de montanhas geladas ou praias paradisíacas. O fascínio também era por imagens encontradas pelo chão, em revistas velhas, panfleto de propaganda ou “embalagens do “leite tipo C”, que trazia desenhos de vaquinhas e flores, as mesmas que muitas vezes faziam a decoração em paredes de algumas cozinhas do bairro”, comenta. Porém, diferentemente da maioria das crianças com quem convivia, seu interesse não era apenas pela beleza, mas também em saber como elas foram criadas.
Inscreva-se para receber as Novidades sobre Eventos
e o Universo das Artes primeiro!
A paixão pela fotografia, porém, estava fora da realidade da futura artista, que começou sua vida profissional não muito diferente da grande maioria da população negra e pobre no Brasil, desempenhando funções de atendente, doméstica, garçonete ou camelô. Aos 20 anos, ao divagar sobre as exposições de fotografia que já visitara na cidade e todo seu conhecimento e apreço pelo assunto, foi indagada por uma psicóloga: “Qual câmera que você usa?”. A pergunta que mudaria sua vida, seguida de um longo silêncio e sem resposta, despertou a jovem Sil na busca por um conhecimento mais aprofundado. “Eu nem sequer fazia ideia de que existiam câmeras fotográficas, e talvez essa fosse realmente a questão.. até aquele dia a fotografia para mim se resumia à foto em si…ou seja, acreditava que a ferramenta usada para fazer aquilo eram as mesmas que eu tinha, os olhos, e não uma máquina fotográfica”, explicitando o abismo cultural, científico e tecnológico entre as diferentes camadas sociais.
“Naquele mesmo dia, eu subi o famoso edifício Av. Central, no Largo da Carioca e me deparei com um mundo maravilhoso (e caro) de equipamentos fotográficos. Eram muitas opções, muitas informações, muitas fotos, minha conexão foi imediata e não havia dúvidas de que meu próximo investimento seria uma câmera. Depois de vários dias de pesquisas, finalmente saí de uma loja do Edifício Avenida Central com minha primeira câmera fotográfica, uma Pentax K1000”, lembra.
De lá pra cá, muitas câmeras passaram pelas mãos de Sil Azevedo nestes 30 anos, porém o mundo da fotografia ainda não fazia parte da realidade da artista. “Meu único desapontamento com a fotografia foi a dificuldade de identificar meu mundo com ela, de estabelecer conexão com quem fotografava, e com quem era fotografado. Todos os fotógrafos que estudei eram brancos, todos os professores de fotografia que tive, eram brancos, todas as pessoas retratadas nas paisagens exuberantes dos quadros decorativos, eram brancos, por isso durante muitos anos eu duvidei da minha capacidade de fazer parte desse mundo, por não me enxergar dentro nele”, destacando uma questão social extremamente pertinente no universo da fotografia. “A maturidade me trouxe a consciência de que não estar retratada nesse mundo de beleza das fotografias de paisagem, não é por incompetência minha, nem de ninguém da minha cor, mas que eu posso sim incluir meu mundo, meu olhar e meu povo no universo belo que a natureza nos oferece. Esse é o foco da minha fotografia, retratar e ter retratado a beleza de um mundo onde o povo negro está incluído, seja dentro do quadro ou atrás da câmera”, comenta e completa: “aquelas fotos de calendário podem até ser dos Alpes suíços, vitórias régias gigantes, ou praias paradisíacas, mas serão feitas pelo olhar de quem até então não se via em tais imagens, nem como parte da paisagem, nem como fotógrafo”.