José Resende – certos acontecimentos escultóricos

O lápis, o esquadro, o papel:
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre
João Cabral de Melo Neto

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Versos de O Engenheiro (1942 – 1945), na edição: NETO, João Cabral de Melo. Poesia Completa/ João Cabral de Melo Neto (organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas de Antonio Carlos Secchin). Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020. p. 63 e 64.

* por Diego Matos

Os caminhos da escultura brasileira perpassam a obra de José Resende (São Paulo, 1945) – artista que por mais de seis décadas consolidou um caminho intelectual e material no amplo espectro da arte contemporânea no Brasil.

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O permanente caminhar crítico do artista conduziu a construção de um fio radical de trabalho que induz a uma força presentificada da natureza da escultura.

Tem-se também um entendimento claro do seu papel dentro de nossa história da arte recente – na formação de novas gerações de artistas, ou nas questões que moldaram a produção brasileira desde a efervescência contextual dos anos 1960 – o que faz dele um pilar importante de sustentação de nosso contemporâneo.

Por isso, a obra silenciosa de Resende, despida de signos circunstanciais, segue no rigor da voz do hoje. Com a ponta de lança voltada para o futuro da própria arte contemporânea no contexto nacional, a Galeria Marcelo Guarnieri propôs ao artista uma ocupação espacial temporária no seu ambiente da SP-Arte, ancorada no histórico Pavilhão da Bienal – o antigo Pavilhão das Indústrias, pensado para receber o maquinário da indústria, e dos produtos tecnológicos no IV Centenário da cidade de São Paulo, na primeira metade da década de 1950.

Aliás, ao longo da história das Bienais, o artista participou de diversas edições desde 1967 (9ª, 17ª, 20ª, 24ª e 33ª).

Tendo em vista essas considerações acerca de uma realidade imediata, em que um espaço de valoração simbólica e comercial da arte ganha razão de ser em um ambiente que contém inerente vocação pública, Resende pensou e projetou uma ocupação temporária com cerca de 14 “acontecimentos escultóricos”, umbilicalmente relacionados, em que não há qualquer véu de significados, ou comentários que as encubram, permitindo assim o nosso enfrentamento real com o trabalho de arte, corpo com corpo, pele com pele, material com material, espaços com espaços.

Há, portanto, nessa proposta um respeito à experiência indelével e inegociável que dá sentido à própria arte: o contato imediato do corpo do indivíduo que percebe a presença do trabalho e a ele reage mental e fisicamente.

Em caminho contrário, é o momento em que a própria obra se torna pública e ganha completude em seu valor. Ao mesmo tempo em que existe uma abertura para uma vontade de negociação, embate e transformação do trabalho, há também uma clareza de procedimento, forma e presença em cada uma das obras dispostas.

É nessa linha tênue de ambiguidade silenciosa que resiste o trabalho do artista e nela se equilibra. Dando ritmo de escala e material, tensão e equilíbrio, os trabalhos (que me fazem querer chamá-los de acontecimentos escult óricos), propõem uma variedade que se dá pela forma e a natureza de seus materiais.

Como é possível visualizar, são reunidas obras distintas, sem qualquer titulação específica: uma escultura maior de chão que por sua escala organiza o espaço e sugere movimento, uma escultura menor sobre uma base, na qual se percebe o gesto do artista, e doze trabalhos estruturados na paisagem das paredes.

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Desses doze, três possuem a predominância do couro em contraste claro com o que é elaborado pela indústria. Outros três são destacados pela membrana de uma tela de inox: uma com três metais tensionados construindo atritos e aproximações (o chumbo, o cobre e a tela galvanizada); quatro peças em que tubos de cobre e cabos de aço inox, guardando as devidas variações, se entrelaçam acentuando forças, tensionamentos e equilíbrios inusitados; por fim, uma obra de caráter formada pelo enrolar de uma tela de aço, devidamente amarada, em que parece florescer um novo plano a se desenrolar.

Por isso, trata-se de experiências vivas com a matéria, especialmente daquelas que advêm de processos industriais, e podem ser fartamente encontradas em lojas de materiais de construção. Não possuem de partida qualquer valor simbólico especial.

Aliás, essa é uma tônica da minuciosa e consciente escolha dos materiais pelo artista: olhar para a natureza da matéria, sublinhada e subvertida em cada um dos trabalhos, é a digital de seu escopo de trabalho ao longo das décadas. A partir de um valor projetual, é no encontro com esses materiais – suas aparências, durabilidades, maleabilidades e propriedades físicas –, que o artista encontra razões possíveis em sua atual prátic a artística.

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Ao mesmo tempo, cada ponto de contato entre os objetos entrelaçados, sem uma motivação pragmática para estarem juntos, mantém viva a potência de um acontecimento escultórico, da parte para o todo e do todo para a parte.

É incontornável a ideia de que o artista tem como objetivo, portanto, construir tensão entre os elementos de forma intencional, ao manipulá-los ou trabalhá-los de acordo com as características de cada um, desconstruindo inclusive a possibilidade de conforto do equilíbrio que uma tida boa arquitetura nos daria.

Ao mesmo tempo em que há um respeito ao material e uma consciência de suas origens e finalidades, há também um desejo de subverter justamente essas finalidades comuns, do mundo da produção de objetos e da construção civil. Por isso, a razão em seus processos de trabalho acompanha a formulação da obra até certo limite, dando vez ao imponderável.

Como escreveu Ronaldo Brito acerca da produção de Resende, “tudo o que é, podia ser diferente”, demonstra ndo-se assim um interesse genuíno para a dimensão corpórea das coisas do mundo, adaptáveis e transformáveis.

De modo geral, a obra de José Resende deve ser percebida a partir de um rigor ético e conceitual, o que dá à sua investigação e pesquisa uma precisão mais duradoura, uma possibilidade de investigação aprofundada das questões da escultura, sendo, portanto, capaz de ver além de uma tradição moderna, ao mesmo tempo em que refuta certos subterfúgios de mercado.

Sua razão escultural é desnuda de um a priori de sentidos. Desvelada a obra, é na percepção dela que se descortinam os signos que alicerçam possíveis sentidos aos trabalhos. O imperativo necessário é: veja, perceba e reflita sobre o que está ao seu alcance. Não há o que mascarar, esconder ou proteger.

Arquiteto de formação, o artista é, a meu ver, o engenheiro da escultura na medida em que propõe uma clareza estrutural e, concomitantemente, abre espaço para imponderabilidade dos materiais em atrito e sob constante influência dos condicionantes do ambiente que o cerca.

É da beleza de um dos nossos maiores poetas, em sua ode à engenharia (como prática criativa), que tomo emprestado alguns versos para falar de José Resende: do projeto mental à realização em oficina, o trabalho do artista está a propor mundos que “nenhum véu encobre”, mas que está aberto até onde os nossos sentidos perceptivos alcançam.

Diego Matos, março de 2024

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