Você também pode ouvir esse artigo na voz da própria Artista Plástica Rosângela Vig:
Nos fanados divãs das cortesãs mais velhas,
Pintada a sobrancelha, o olhar langue e fatal,
Num esgar, a fazer das pálidas orelhas
Tombar um retinir de pedra e de metal;Sobre um verde tapiz, muitos rostos sem boca,
Como bocas sem cor, maxilares sem dente,
Dedos em convulsão pela febre mais louca,
Sondando o bolso roto ou o seio fremente;Sob os estuques vis, fila de frouxos lustres,
De candeeiros de mal projetados fulgores
Sobre as frontes letais dos poetas ilustres
Quem vem desperdiçar os seus sangrentos suores;Eis o negro painel que num sonho noturno
Vi desdobrar-se a meu olhar claro e curioso.
Eu mesmo, num desvão do covil taciturno,
Encostei-me a tremer, o mais mudo e invejoso.
(BAUDELAIRE, 2006, p.110)
A vida boêmia parisiense do final do século XIX nunca foi tão bem retratada: na Poesia, pelas palavras de Charles Baudelaire (1821-1867), em seus Quadros Parisienses; na Pintura, pelas formas e pelas cores de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901). De ambos, os mais poéticos retratos de Paris e de suas pessoas. E Lautrec foi além da vida noturna, na cidade francesa; passeou pela forma peculiar com que conseguiu expressar seu traço; divagou pelas cores, pelo movimento e pelos lugares que ele mesmo frequentou.
De família rica e aristocrática, o artista teve vida boêmia e chegou a frequentar o Moulin Rouge, os cafés e os bordéis da cidade. Vítima de uma rara doença, a estatura de Lautrec era baixa; suas pernas eram curtas, mas o corpo era de um adulto. De sensibilidade aguçada, até mesmo em virtude de sua aparência, o artista conseguia perceber a fragilidade das pessoas que retratava. Seus personagens eram as prostitutas, os bêbados, as dançarinas e as cantoras dos cabarés. Lautrec desenhou cartazes para o Moulin Rouge e para outras casas noturnas que frequentou, além de expor e de vender seus trabalhos nesses locais. Sua morte foi precoce, antes mesmo de completar 37 anos, em virtude do alcoolismo e da vida desregrada. Do artista, ficou o legado de mais de 360 cartazes e gravuras, mais de 1000 quadros e de 5000 desenhos. Seu estilo antecipou a Art Nouveau, além de seus cartazes terem servido de referência para o Design Gráfico e para a Publicidade.
Poderão ser vistos no MASP, em São Paulo, 75 obras de Lautrec, além de 50 documentos da época, fotografias do artista e de seus amigos, de 30 de junho a 1 de outubro de 2017, numa mostra produzida pelo MASP; patrocinada pelo escritório Pinheiro Neto Advogados, com a expografia do escritório METRO Arquitetos Associados. Muitas dessas obras são de coleções particulares nacionais e internacionais como Musée d’Orsay (Paris), Tate e Victoria Albert Museum (Londres), The Art Institute of Chicago, National Gallery of Art de Washington e Museo Thyssen-Bornemizsa (Madrid).
A telas e os cartazes de Lautrec fazem uma viagem no tempo e visitam os locais por onde o artista passou, fragmentos de cenas. Há registros das danças, com seus movimentos exacerbados, das pessoas bebendo, dos vícios e da sexualidade. Considerado pós Impressionista, sua forma de pintar apresenta linhas sinuosas contornos, muitas vezes em preto, com cobertura leve da cor. Os contornos sinuosos e ondulados sugerem um leve estremecimento da imagem, proporcionando a ideia de movimento.
Suas imagens são registros fotográficos de momentos, de fragmentos das cenas noturnas. Na obra A Roda (Fig. 2), o artista optou por não usar muitas cores e exagerar no movimento que fica por conta dos cabelos da dançarina, jogados para trás, num exato momento em que roda o vestido para o alto. Em Descanso durante o Baile de Máscaras (Fig. 4), a moça que chega ao balcão está de máscaras e seu corpo parece chamar a atenção de um rapaz, ao lado, também mascarado. Lautrec parece ter captado a expressão de abatimento das Mulheres na Sala de Jantar (Fig. 5) em um momento de conversa. Na mesa quase vazia, apenas o copo apresenta o líquido vermelho que pode ser vinho, acentuando a ideia do alcoolismo. O som embala a dança na figura 11. Os riscos e a falta de nitidez dos corpos parecem acentuar o movimento e o salão todo tem a aparência de um só corpo se locomovendo ao ritmo da música. As pessoas no balcão parecem estar distraídas, distantes com os olhares perdidos, em melancólica expressão, aguardando o tempo passar.
Ao espectador fica o convite para apreciar as obras de Lautrec e, feito um flâneur 1 perambular pelas formas e pelas cores que o artista utilizou para expressar seu tempo, as pessoas com quem viveu e os lugares por onde passou. Talvez seja esse o maior atributo da Grande Arte, conduzir a mente a outros tempos, por meio da imaginação, da forma e da cor.
Quero, para compor meus castos monólogos,
Deitar-me junto ao céu, à moda dos astrólogos
E bem perto do sino ouvir-lhe cismarento
As solenes canções, levadas pelo vento.
As mãos postas no queixo, eu do alto da mansarda,
Hei de ver a oficina a cantar na hora parda:
Torres e chaminés ou mastro da cidade,
Grandes céus a fazer sonhar a eternidade.
(BAUDELAIRE, 2006, p.110)
1 Flâneur significa errante, observador de rua ou caminhante. Para Charles Baudelaire, o termo se refere ao artista e poeta, que observa a vida da metrópole moderna. (BAUDELAIRE, 1997, p.14)
Referências:
- BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006.
- BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997.
- CHILVERS, Ian; ZACZEK, Iain; WELTON, Jude; BUGLER, Caroline; MACK, Lorrie. História Ilustrada da Arte. Publifolha, S.Paulo, 2014.
As figuras:
Fig. 1 – A Condessa Adele de Toulouse-Lautrec no Jardim de Malromé, Toulouse Lautrec, 1880. Foto: Acervo MASP.
Fig. 2 – A Roda, Toulouse-Lautrec, 1893. Foto: Acervo MASP.
Fig. 3 – Artista com Luvas Verdes, A Cantora Dolly do Star Le Havre, Toulouse-Lautrec, 1899. Foto: Acervo MASP.
Fig. 4 – Descanso durante o Baile de Máscaras, Toulouse-Lautrec, 1899. Foto: Divulgação.
Fig. 5 – As Mulheres na Sala de Jantar, Toulouse-Lautrec, sem data. Foto: Divulgação.
Fig. 6 – Gaston Bonnefoy, Toulouse-Lautrec, sem data. Foto: Divulgação.
Fig. 7 – A Grande Maria, Toulouse-Lautrec, 1886. Foto: Divulgação.
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Fig. 8 – Mulher com Cachorro, Toulouse-Lautrec, 1891. Foto: Divulgação.
Fig. 9 – O Senhor Fourcade, Toulouse-Lautrec, sem data. Foto: Divulgação.
Fig. 10 – O Senhor Louis Pascal visto de Costas, Toulouse-Lautrec, sem data. Foto: Divulgação.
Fig. 11 – Moulin de la Galette, Toulouse Lautrec, 1889. Foto: Divulgação.
Fig. 12 – O Divã, Toulouse Lautrec, 1893. Foto: Acervo MASP.
Fig. 13 – O Almirante Paul Viaud, Toulouse-Lautrec, sem data. Foto: Divulgação.
Fig. 14 – Frontispício para Elles, Toulouse-Lautrec, 1895. Foto: Divulgação.
Fig. 15 – Moulin Rouge (La Goulue), Toulouse-Lautrec, 1891. Foto: Divulgação.
ROSÂNGELA VIG
Sorocaba – São Paulo
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