Você também pode ouvir esse artigo na voz da própria Artista Plástica Rosângela Vig:
“As sombras encontram seus limites em determinados pontos. Ignorá-los resultará em trabalhos sem relevo; e o relevo é o mais importante, a alma da pintura. (…) O rosto ganha grandemente em relevo (…) e em beleza com a intensificação de luz e de sombra.” (DA VINCI, 2007, p.17)
Passo a passo 2 de como desenhar
No Renascimento, os estudos de perspectiva, de luz e de sombra, levaram à produção de uma Arte que serviu de padrão para outros períodos. Pelas mãos dos grandes Mestres como Leonardo Da Vinci, Sandro Botticelli e Piero Della Francesca, foram produzidas obras consideradas até hoje como modelos de Belo. Mas talvez o sorriso enigmático da Gioconda 1 de Da Vinci, não seria tão perfeito, se não fosse a luz que ilumina seu semblante. Nesse jogo da Arte, o trabalho com a sombra é indispensável para que a obra adquira volume e destaque.
A sombra é um elemento do desenho e da pintura que, se trabalhado adequadamente promove grandes efeitos. Na figura 1, a observação apurada do artista eternizou uma cena urbana, de forma poética. Pode ser que no dia a dia, tal cena passaria despercebida, mas para o artista, os detalhes do cotidiano seduziram seu olhar.
Na composição, estão presentes a simplicidade de uma pessoa arrumando a mesa de um bar, as cores das cadeiras, um homem e um caminhão do outro lado da rua, um cachorro magro e, no centro da imagem, um fusca, protagonizando o retrato de uma época e de um estilo. À riqueza de detalhes, somam-se ainda os fios de eletricidade e postes, que compõem o cenário comum de uma cidade; e o prédio ao fundo, com um pouco de verde, talvez de um parque ou de uma praça, onde a imagem se assenta, numa linha do horizonte. Entre as particularidades que tornam a obra bela, estão a perspectiva, que leva à imagem, a ideia de profundidade; e a sombra do prédio que se projeta no chão, permitindo a quem vê, a impressão de que o dia está quente e a luz do sol é de um final de manhã. Numa percepção profunda, o espectador pode até mesmo imaginar o calor sobre a calçada e ouvir o barulho do movimento da rua. A poesia se incorpora à imagem quando o dia a dia é representado pela Arte, nos detalhes do movimento, das cores e da luz.
No caso da obra, a claridade procede do canto superior esquerdo (Fig. 2) e clareia o caminhão e o homem do outro lado da rua, à direita da cena, porque não há construção que impeça que a claridade incida nesse ponto da imagem. Do toldo, vê-se apenas a parte inferior, uma vez que está sendo visto de baixo para cima. Ele está em perspectiva, com ponto de fuga para o fundo da cena e sua sombra se projeta na calçada, sobre o Fusca e sobre o homem do bar. O mesmo ocorre com o estabelecimento mais à frente. Sua sombra se projeta da mesma maneira sobre a calçada, mas em tamanho menor, por estar em perspectiva.
Vale perceber ainda que a falta de luz nem sempre é representada pela cor preta, uma vez que uma cena não é totalmente escura e durante a noite, por exemplo, a iluminação pode ser artificial (Fig. 3). No caso da figura 1, a sombra é de cor azul turquesa, mais escuro que o céu e que o chão, porque o que ilumina a cena é a luz solar. Deve-se lembrar ainda que, como o dia está ensolarado e quase a pino, a linha divisória entre a luz e a sombra é chapada, ou seja, bem delineada, o que acentua a ideia de calor. Se na cena, o dia estivesse nublado, a sombra projetada seria esfumada, porque a incidência de luz seria menos intensa. As linhas da sombra ainda dependem da opacidade do que está iluminado, ou seja, a sombra é mais nítida quando a luz recai sobre algo mais opaco. A sombra também pode mudar sua posição, conforme a origem da luz. Se a cena apresentasse a luz do final de tarde, a sombra poderia chegar até o outro lado da rua, do lado direito da obra. Por outro lado, a luz matinal iria iluminar o que agora está sob efeito da sombra.
A figura 3 por outro lado, apresenta iluminação noturna. A artista também trabalhou com um tema urbano, ao representar um café, local de encontro e de bate papos. Dentro do estabelecimento, as luzes estão acesas e a porta está aberta, à espera de pessoas. Do lado de fora, as cadeiras arrumadas, porém vazias, significam que a vida noturna ainda não começou, embora o céu já esteja escuro. O encanto da obra fica por conta da iluminação (Fig. 4), que vem um pouco da rua, um pouco de dentro do próprio café e um pouco da lâmpada à porta, que chegam a clarear as cadeiras e até mesmo a calçada, projetando sombras em diferentes direções. E, mesmo sendo à noite, uma vez que há luz artificial, as sombras não chegam a ser pretas, mas apresentam-se nas variações de cinza. A beleza da cena ainda fica por conta do jogo da perspectiva, com dois pontos de fuga, que a artista utilizou, o que dá volume às imagens. A rua, as cadeiras, o estabelecimento e até mesmo os toldos diminuem para o lado esquerdo e para o lado direito da obra, uma vez que o olhar se posiciona na parte central da cena.
O urbano se torna encantador, quando a Arte repousa suas cores. O encanto de uma cena comum se perderia se não fosse a percepção refinada dos artistas sobre cada detalhe e sua maneira única de distribuição de cores, de formas e de sombras. À Arte não cabe uma correspondência com a realidade, mas a possibilidade de que a cada olhar, o apreciador siga desfolhando seus pormenores e descobrindo novas faces.
1 Link para a Gioconda de Leonardo Da Vinci, Museu do Louvre, Paris:
www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/mona-lisa-%E2%80%93-portrait-lisa-gherardini-wife-francesco-del-giocondo
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As figuras:
Fig. 1 – Outro Fusca da Brigadeiro, Marcelo Vitiello.
Fig. 2 – Iluminação e sombras. Outro Fusca da Brigadeiro, Marcelo Vitiello.
Fig. 3 – Colympia, Cássia Acosta.
Fig. 4 – Iluminação e sombras. Colympia, Cássia Acosta.
ROSÂNGELA VIG
Sorocaba – São Paulo
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