Como Surge a Obra Surreal por Rosângela Vig

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Você também pode ouvir esse artigo na voz da própria Artista Plástica Rosângela Vig:

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Rosângela Vig é Artista Plástica e Professora de História da Arte.

Ah! Toda alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo espaço da pureza.

Ò almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da dor do calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Ministério?

(CRUZ E SOUZA, 2011, p.35)

É preciso que a alma esteja aberta, que se desprenda e que lance sua volátil matéria, para que a obra surja. E quando a fantasia abandona o cárcere do espírito, a obra surreal germina sobre o papel em branco ou sobre a tela alva; ela aflora do metal ou da pedra bruta ainda disformes; e irrompe seus seres fantásticos, seus mundos e suas criaturas. Os universos imaginários invadem, permeiam o material artístico como frutos da inventividade do artífice, ávido por atravessar a fronteira do pensamento e navegar pelos encantos de realidades insólitas e utópicas. O fazer surreal permite que os devaneios se apoderem da criatividade e que se concretizem na forma de Obra de Arte. O artista é aquele que consegue lapidar esses sonhos, seja no formato do Desenho ou da Pintura; seja no entalhe da Escultura ou da Arquitetura. E as obras vão surgindo.

Fig. 1 – The Art Book, Sônia Menna Barreto, 2003.
Fig. 1 – The Art Book, Sônia Menna Barreto, 2003.

Nesses cantos imaginários em que a obra surreal habita, podem também residir nossos sonhos, nossos medos ou nossos pensamentos mais remotos. E podem ser esses os caminhos onde encontramos as fobias que nos acometem e os abismos de nossas almas. Ao observador, vale a pena se abandonar por esses mundos fantásticos, com a alma nua, com o pensamento leve e deles fazer parte.

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Com influências da Psicanálise de Freud, o Surrealismo está inserido nas vanguardas que nortearam o Movimento Modernista, em 1920. Com o objetivo de explorar o subconsciente, rejeitando a lógica e a razão, a corrente foi liderada por André Breton (1896-1966), na Literatura, e seguido por artistas como Salvador Dali (1904-1989), Marc Chagall (1887-1985) e Joan Miró 1 (1893-1983). No México, entre os artistas que aderiram ao estilo, destacou-se Frida Kahlo 2, classificada de surrealista pelo próprio André Breton. Com o término da Segunda Guerra Mundial, os artistas se dispersaram e a vanguarda chegou ao fim, embora André Breton continuasse fiel ao movimento até sua morte. Entretanto, a essência surrealista continua a inspirar os artistas da contemporaneidade.

De feitio surreal, são as obras da brasileira Sônia Menna Barreto, artista que integra o acervo da Família Real Britânica, a Royal Collection. Seus trabalhos permitem que mundos, tempos e pessoas se encontrem e que interajam, levando o lúdico à obra, por meio de sutis ligações. Na figura 1, sem pedir licença, os personagens que habitam uma cena do artista flamengo 3 Cornelis Van Dalem, em um livro de Arte, saltam para a outra página, e observam a paisagem, do topo de um prédio. Entre as particularidades da cena, os dois homens sentados sobre um lápis que pende sobre o edifício, lembram a famosa fotografia de Charles Ebbets, de 1932, o “Almoço no topo de um Arranha-céu”. A locomotiva desgovernada, na figura 2, que está na página amarelada de um livro antigo, pode atravessar a fronteira do imaginário e se dirigir apressada a outra página, cobrindo de fumaça parte do papel. Salvador Dali e sua esposa Gala são o Rei e a Dama de Copas, das cartas de um baralho, na figura 3 e parecem estar em movimento. A relevância que a artista deu para as técnicas de sombra e de perspectiva foram de fundamental importância para as imagens hiper-realistas e as surpreendentes cenas. Na figura 4, o céu muito azul e o sol quase a pino indicam um dia quente de verão. No varal, há dois pregadores, um está solto e o outro segura uma última gota de água que pende. A obra de 1986 retrata de forma surreal um tema da atualidade e pode levar a interpretações e a questionamentos. O que rouba a cena é a transparência da gota arredondada, que ameaça cair. Através dela pode se divisar as nuvens e o céu azul, em meio ao brilho arredondado.

Fig. 6 – Visionário, Alexandre de Paula, 2014.
Fig. 6 – Visionário, Alexandre de Paula, 2014.

O subjetivismo e a fantasia estão ainda nas obras de Clovis Loureiro (Fig. 5), onde a belíssima ave emerge e parece saltar da tela. Na imagem, o movimento fica por conta de seus formatos sinuosos e flexíveis, de suas longas asas onduladas que parecem se sobrepor umas às outras, como a alçar voo. A repetição de formas geométricas e de cores acentuam um exótico e harmônico conjunto que se destaca sobre o fundo preto, levando à sensação final de apurado bom gosto. Talvez a fisionomia feminina, ao centro da figura 6, obra do artista Alexandre De Paula, habite ela mesma um mundo incomum. As formas geométricas e abstratas muito coloridas que compõem a cena, contrastam com a monocromia da face que parece se mover lentamente para a esquerda, como numa tentativa árdua de reconhecer o mundo ao redor. Os dois artistas exploraram as técnicas do movimento de maneira notável, permitindo que a cena estática adquirisse leve agitação.

Mundos paralelos e opostos podem estar ligados entre si, por um fino fio, no meio de uma ampulheta, na obra de Rita Caruzzo (Fig. 7). A cena irreal e imaginária, ainda pode compor uma história com a outra cena, da mesma artista (Fig. 8) em que um mundo pode estar prestes a ser criado. Das mãos de uma forma de vida desconhecida, jorram as cores como forma líquida da existência. Mas as cores podem povoar outros mundos imaginários, levando alegria à figura 9. Entretanto a cidade que abusa do irreal, pode causar assombro, com suas construções sinuosas que parecem flutuar sobre um verde fantástico. As máscaras que pairam no céu exprimem alegria, dor e medo, como se estivessem confusas, aprisionadas em um lugar demasiadamente extravagante e desconhecido. Pode ser que o real esteja do outro lado. Nesses mundos imaginários, a exploração e a combinação das cores foram técnicas de fundamental importância para o resultado final.

Fig. 9 – Visões do Imaginário, Rosângela Vig, 2015.
Fig. 9 – Visões do Imaginário, Rosângela Vig, 2015.

Tocar a lua e as estrelas pode ser um simples desejo, fácil de ser realizado, em uma obra que reúne sonhos e fantasias (Fig. 10). As cores puras dão relevância à delicadeza dos seres graciosos que habitam a cena. Tudo é possível na Arte de Lu Valença, que sobrevoa o imaginário e que povoa o pensamento. Aqui, o uso das cores primárias lembra as técnicas das obras Naif e encanta por si só. Mas a surrealidade ainda pode abusar da vasta variedade de temas e percorrer um circo (Fig. 11), em meio um espetáculo, em que palhaços, cavalos, equilibristas e malabaristas interagem, em sutil colorido, de formas geometrizadas, em pleno movimento. A cena pode causar assombro, por seus seres disformes e esquálidos. Nela também o uso da cor permitiu um efeito final coerente, uma vez que o verde está em doses corretas, bem distribuído.

Fig. 10 – Encontro, Luciane Valença, 2014.
Fig. 10 – Encontro, Luciane Valença, 2014.

Para Salvador Dali (2007, p.32), “o verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar cenas extraordinárias, em meio a um deserto vazio. O verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar pacientemente uma pera, cercado dos tumultos da história.” É preciso que o artista abstraia do mundo que o cerca e que explore seus sonhos de maneira arraigada, subjetiva e ilimitada.

Fig. 11 – Um Circo, Rafa Barrozo, 2016.
Fig. 11 – Um Circo, Rafa Barrozo, 2016.

Em flandre ou em ferro, as esculturas de Silvana Ran (Figuras 12, 13 e 14), expõem seres surreais, que parecem se mover a lentos passos, pensativas, sofridas, cansadas. As figuras quase humanas são longas, angulares e lembram personagens de Graciliano Ramos. Pode ser que, na imprecisão de seu silêncio, elas murmurem uma silenciosa poesia, quase inaudível, e perpetuam sua caminhada em nosso mundo, deixando na memória a lembrança de suas formas esguias. Nelas a escultora atreveu se afastar da realidade, desconfigurando os seres e os tornando únicos. Porque assim é a Arte.

A disposição do artista em se apartar da realidade permitiu que a obra se tornasse um meio para expor seus sonhos e talvez seus pesadelos. O uso de técnicas apuradas de perspectiva, de luz, de sombra, o jogo de cores e de formas, numa combinação perfeita, na dosagem correta foram itens fundamentais para que os temas fossem explorados de forma original e única. Não se pode deixar de lembrar que os mundos e seres surreais se distanciam da realidade, mas criam outras, muito próximas do campo dos sonhos e da imaginação. Esses mundos exóticos e incríveis não precisam ter vínculo com o que é verdadeiro. É nesse ponto que a obra se aproxima da sublimidade e demanda uma compreensão mais profunda. O espírito tem que estar livre para que a alma debruce nesses arrebatamentos. Permita se encantar eternamente. E vale pensar mais um pouco,

Arte lava a alma da sujidade quotidiana.

(PICASSO, 2007, p.82)

Não sou eu que sou o palhaço, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e tão inconscientemente ingênua, que joga o jogo da seriedade para melhor esconder sua loucura.

(DALI, 2007, P.36)

Fig. 14 – Amparo. Silvana Ran, 2012.
Fig. 14 – Amparo. Silvana Ran, 2012.

1 Joan Miró:
www.obrasdarte.com/joan-miro-a-forca-da-materia-instituto-tomie-ohtake/

2 Frida Kahlo:
www.obrasdarte.com/exposicao-frida-kahlo-conexao-entre-as-mulheres-surrealistas-no-mexico-por-rosangela-vig/

3 Arte Flamenga:
www.obrasdarte.com/arte-flamenga-renascimento-do-norte-europeu-por-rosangela-vig/

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Referências:

  1. CRUZ E SOUZA in MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia faz Pensar. São Paulo: Ed. Ática, 2011.
  2. DALI, Salvador. Grandes Mestres da Pintura. Folha de São Paulo, S. Paulo, 2007.
  3. DALI, Salvador in KLINGSÖR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. São Paulo: Ed. Paisagem, 2007.
  4. PICASSO, Pablo, in KLINGSÖR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. São Paulo: Ed. Paisagem, 2007.

As figuras:

Fig. 1 – The Art Book, Sônia Menna Barreto, 2003.

Fig. 2 – Le Melon, Sônia Menna Barreto, 2011.

Fig. 3 – Salvador Dali e Gala, Sônia Menna Barreto, 2012.

Fig. 4 – Enxuta, Sônia Menna Barreto, 1986.

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Fig. 5 – Magnífico, Clovis Loureiro.

Fig. 6 – Visionário, Alexandre de Paula, 2014.

Fig. 7 – Tempo Surreal, Rita Caruzzo, 2009.

Fig. 8 – A Criação, Rita Caruzzo, 2011.

Fig. 9 – Visões do Imaginário, Rosângela Vig, 2015.

Fig. 10 – Encontro, Luciane Valença, 2014.

Fig. 11 – Um Circo, Rafa Barrozo, 2016.

Fig. 12 – O Pensador, Silvana Ran, 2009.

Fig. 13 – Maternidade e Proteção, Silvana Ran, 2013.

Fig. 14 – Amparo, Silvana Ran, 2012.

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