Você também pode ouvir esse artigo na voz da própria Artista Plástica Rosângela Vig:
Ah! Toda alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.Tudo se veste de igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo espaço da pureza.Ò almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da dor do calabouço, atroz, funéreo!Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Ministério?(CRUZ E SOUZA, 2011, p.35)
É preciso que a alma esteja aberta, que se desprenda e que lance sua volátil matéria, para que a obra surja. E quando a fantasia abandona o cárcere do espírito, a obra surreal germina sobre o papel em branco ou sobre a tela alva; ela aflora do metal ou da pedra bruta ainda disformes; e irrompe seus seres fantásticos, seus mundos e suas criaturas. Os universos imaginários invadem, permeiam o material artístico como frutos da inventividade do artífice, ávido por atravessar a fronteira do pensamento e navegar pelos encantos de realidades insólitas e utópicas. O fazer surreal permite que os devaneios se apoderem da criatividade e que se concretizem na forma de Obra de Arte. O artista é aquele que consegue lapidar esses sonhos, seja no formato do Desenho ou da Pintura; seja no entalhe da Escultura ou da Arquitetura. E as obras vão surgindo.
Nesses cantos imaginários em que a obra surreal habita, podem também residir nossos sonhos, nossos medos ou nossos pensamentos mais remotos. E podem ser esses os caminhos onde encontramos as fobias que nos acometem e os abismos de nossas almas. Ao observador, vale a pena se abandonar por esses mundos fantásticos, com a alma nua, com o pensamento leve e deles fazer parte.
Com influências da Psicanálise de Freud, o Surrealismo está inserido nas vanguardas que nortearam o Movimento Modernista, em 1920. Com o objetivo de explorar o subconsciente, rejeitando a lógica e a razão, a corrente foi liderada por André Breton (1896-1966), na Literatura, e seguido por artistas como Salvador Dali (1904-1989), Marc Chagall (1887-1985) e Joan Miró 1 (1893-1983). No México, entre os artistas que aderiram ao estilo, destacou-se Frida Kahlo 2, classificada de surrealista pelo próprio André Breton. Com o término da Segunda Guerra Mundial, os artistas se dispersaram e a vanguarda chegou ao fim, embora André Breton continuasse fiel ao movimento até sua morte. Entretanto, a essência surrealista continua a inspirar os artistas da contemporaneidade.
De feitio surreal, são as obras da brasileira Sônia Menna Barreto, artista que integra o acervo da Família Real Britânica, a Royal Collection. Seus trabalhos permitem que mundos, tempos e pessoas se encontrem e que interajam, levando o lúdico à obra, por meio de sutis ligações. Na figura 1, sem pedir licença, os personagens que habitam uma cena do artista flamengo 3 Cornelis Van Dalem, em um livro de Arte, saltam para a outra página, e observam a paisagem, do topo de um prédio. Entre as particularidades da cena, os dois homens sentados sobre um lápis que pende sobre o edifício, lembram a famosa fotografia de Charles Ebbets, de 1932, o “Almoço no topo de um Arranha-céu”. A locomotiva desgovernada, na figura 2, que está na página amarelada de um livro antigo, pode atravessar a fronteira do imaginário e se dirigir apressada a outra página, cobrindo de fumaça parte do papel. Salvador Dali e sua esposa Gala são o Rei e a Dama de Copas, das cartas de um baralho, na figura 3 e parecem estar em movimento. A relevância que a artista deu para as técnicas de sombra e de perspectiva foram de fundamental importância para as imagens hiper-realistas e as surpreendentes cenas. Na figura 4, o céu muito azul e o sol quase a pino indicam um dia quente de verão. No varal, há dois pregadores, um está solto e o outro segura uma última gota de água que pende. A obra de 1986 retrata de forma surreal um tema da atualidade e pode levar a interpretações e a questionamentos. O que rouba a cena é a transparência da gota arredondada, que ameaça cair. Através dela pode se divisar as nuvens e o céu azul, em meio ao brilho arredondado.
O subjetivismo e a fantasia estão ainda nas obras de Clovis Loureiro (Fig. 5), onde a belíssima ave emerge e parece saltar da tela. Na imagem, o movimento fica por conta de seus formatos sinuosos e flexíveis, de suas longas asas onduladas que parecem se sobrepor umas às outras, como a alçar voo. A repetição de formas geométricas e de cores acentuam um exótico e harmônico conjunto que se destaca sobre o fundo preto, levando à sensação final de apurado bom gosto. Talvez a fisionomia feminina, ao centro da figura 6, obra do artista Alexandre De Paula, habite ela mesma um mundo incomum. As formas geométricas e abstratas muito coloridas que compõem a cena, contrastam com a monocromia da face que parece se mover lentamente para a esquerda, como numa tentativa árdua de reconhecer o mundo ao redor. Os dois artistas exploraram as técnicas do movimento de maneira notável, permitindo que a cena estática adquirisse leve agitação.
Mundos paralelos e opostos podem estar ligados entre si, por um fino fio, no meio de uma ampulheta, na obra de Rita Caruzzo (Fig. 7). A cena irreal e imaginária, ainda pode compor uma história com a outra cena, da mesma artista (Fig. 8) em que um mundo pode estar prestes a ser criado. Das mãos de uma forma de vida desconhecida, jorram as cores como forma líquida da existência. Mas as cores podem povoar outros mundos imaginários, levando alegria à figura 9. Entretanto a cidade que abusa do irreal, pode causar assombro, com suas construções sinuosas que parecem flutuar sobre um verde fantástico. As máscaras que pairam no céu exprimem alegria, dor e medo, como se estivessem confusas, aprisionadas em um lugar demasiadamente extravagante e desconhecido. Pode ser que o real esteja do outro lado. Nesses mundos imaginários, a exploração e a combinação das cores foram técnicas de fundamental importância para o resultado final.
Tocar a lua e as estrelas pode ser um simples desejo, fácil de ser realizado, em uma obra que reúne sonhos e fantasias (Fig. 10). As cores puras dão relevância à delicadeza dos seres graciosos que habitam a cena. Tudo é possível na Arte de Lu Valença, que sobrevoa o imaginário e que povoa o pensamento. Aqui, o uso das cores primárias lembra as técnicas das obras Naif e encanta por si só. Mas a surrealidade ainda pode abusar da vasta variedade de temas e percorrer um circo (Fig. 11), em meio um espetáculo, em que palhaços, cavalos, equilibristas e malabaristas interagem, em sutil colorido, de formas geometrizadas, em pleno movimento. A cena pode causar assombro, por seus seres disformes e esquálidos. Nela também o uso da cor permitiu um efeito final coerente, uma vez que o verde está em doses corretas, bem distribuído.
Para Salvador Dali (2007, p.32), “o verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar cenas extraordinárias, em meio a um deserto vazio. O verdadeiro pintor é aquele capaz de pintar pacientemente uma pera, cercado dos tumultos da história.” É preciso que o artista abstraia do mundo que o cerca e que explore seus sonhos de maneira arraigada, subjetiva e ilimitada.
Em flandre ou em ferro, as esculturas de Silvana Ran (Figuras 12, 13 e 14), expõem seres surreais, que parecem se mover a lentos passos, pensativas, sofridas, cansadas. As figuras quase humanas são longas, angulares e lembram personagens de Graciliano Ramos. Pode ser que, na imprecisão de seu silêncio, elas murmurem uma silenciosa poesia, quase inaudível, e perpetuam sua caminhada em nosso mundo, deixando na memória a lembrança de suas formas esguias. Nelas a escultora atreveu se afastar da realidade, desconfigurando os seres e os tornando únicos. Porque assim é a Arte.
A disposição do artista em se apartar da realidade permitiu que a obra se tornasse um meio para expor seus sonhos e talvez seus pesadelos. O uso de técnicas apuradas de perspectiva, de luz, de sombra, o jogo de cores e de formas, numa combinação perfeita, na dosagem correta foram itens fundamentais para que os temas fossem explorados de forma original e única. Não se pode deixar de lembrar que os mundos e seres surreais se distanciam da realidade, mas criam outras, muito próximas do campo dos sonhos e da imaginação. Esses mundos exóticos e incríveis não precisam ter vínculo com o que é verdadeiro. É nesse ponto que a obra se aproxima da sublimidade e demanda uma compreensão mais profunda. O espírito tem que estar livre para que a alma debruce nesses arrebatamentos. Permita se encantar eternamente. E vale pensar mais um pouco,
Arte lava a alma da sujidade quotidiana.
(PICASSO, 2007, p.82)
Não sou eu que sou o palhaço, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e tão inconscientemente ingênua, que joga o jogo da seriedade para melhor esconder sua loucura.
(DALI, 2007, P.36)
1 Joan Miró:
www.obrasdarte.com/joan-miro-a-forca-da-materia-instituto-tomie-ohtake/
2 Frida Kahlo:
www.obrasdarte.com/exposicao-frida-kahlo-conexao-entre-as-mulheres-surrealistas-no-mexico-por-rosangela-vig/
3 Arte Flamenga:
www.obrasdarte.com/arte-flamenga-renascimento-do-norte-europeu-por-rosangela-vig/
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- CRUZ E SOUZA in MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia faz Pensar. São Paulo: Ed. Ática, 2011.
- DALI, Salvador. Grandes Mestres da Pintura. Folha de São Paulo, S. Paulo, 2007.
- DALI, Salvador in KLINGSÖR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. São Paulo: Ed. Paisagem, 2007.
- PICASSO, Pablo, in KLINGSÖR-LEROY, Cathrin. Surrealismo. São Paulo: Ed. Paisagem, 2007.
As figuras:
Fig. 1 – The Art Book, Sônia Menna Barreto, 2003.
Fig. 2 – Le Melon, Sônia Menna Barreto, 2011.
Fig. 3 – Salvador Dali e Gala, Sônia Menna Barreto, 2012.
Fig. 4 – Enxuta, Sônia Menna Barreto, 1986.
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Fig. 5 – Magnífico, Clovis Loureiro.
Fig. 6 – Visionário, Alexandre de Paula, 2014.
Fig. 7 – Tempo Surreal, Rita Caruzzo, 2009.
Fig. 8 – A Criação, Rita Caruzzo, 2011.
Fig. 9 – Visões do Imaginário, Rosângela Vig, 2015.
Fig. 10 – Encontro, Luciane Valença, 2014.
Fig. 11 – Um Circo, Rafa Barrozo, 2016.
Fig. 12 – O Pensador, Silvana Ran, 2009.
Fig. 13 – Maternidade e Proteção, Silvana Ran, 2013.
Fig. 14 – Amparo, Silvana Ran, 2012.
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ROSÂNGELA VIG
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