Deus quer que o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te,
E foste desvendando a espuma.
(PESSOA, 2006, p. 67)
Talvez seja a Arte o fruto de uma epifania ou talvez seja ela a ousadia de um devaneio, ávido por alçar voo e por perpetuar sua existência. E talvez tenham sido esses o caminhos dos sonhos de Arthur Bispo do Rosário 1, 2 (1909 ou 1911-1989) que, por longos anos, silenciosamente, teceu experiências, esperas, sussurros, emancipado de padrões, seguindo apenas o olhar da alma. Seu fazer artístico foi livre, e lembra muito a espera de Penélope 3, no fiar de sua interminável trama, permeada de paciência, na clausura de seu pensamento.
Nascido em Japaratuba, Sergipe, cidade para onde nunca mais retornou, Bispo, como era conhecido, mudou-se, em 1926, para o Rio de Janeiro; alistou-se na Marinha; e passou ainda pelas profissões de pugilista e de guarda-costas. Em janeiro de 1939, após um delírio místico, foi diagnosticado com esquizofrenia e ficou então, por 50 anos, internado em hospitais psiquiátricos, entre os quais, a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde viveu durante 40 anos, alternados entre saídas e permanências. Em sua internação definitiva, o espaço da instituição se transformou em seu ateliê, onde criou grande parte de seus 804 trabalhos, transformados, após sua morte, em patrimônio histórico, em 1992 pelo INEPAC (RJ).
Em suas alucinações, ouvia vozes que lhe falavam sobre a missão regeneradora de sua Arte; e lhe incubiram a missão de registrar o que havia na Terra. Assim, a partir de materiais rudimentares e simples, Bispo criou miniaturas e catalogou objetos, numa espécie de inventário para o dia do Juízo Final. Nesse dia, utilizaria o manto (Fig. 1), com o qual se apresentaria a Deus, como representante dos homens. Na veste, bordou os nomes das pessoas que conhecia, para que Deus se lembrasse e que intercedesse por elas.
O efêmero e o transitório passaram por suas mãos, numa espécie de ressignificação material. Objetos de uso diário da colônia, como canecas, garrafas, colheres, caixas e até mesmo calçados, serviam-lhe de matéria prima para seus trabalhos. Ele os organizava, fazia composições e sobreposições, como a reclassificar seus conceitos. Seus bordados, em lençóis e roupas, eram feitos a partir de fios que adquiria, desfiando seus uniformes de interno. A partir das vozes que ouvia, registrava nos tecidos, pacientemente, nomes de lugares, nomes de pessoas, notícias e trechos Bíblicos. Entre suas peças, há estandartes, faixas e miniaturas. Enquanto a pobreza e os problemas mentais o excluíam, era no claustro de seu pensamento, que sua arte, autêntica, entrava como um processo de reorganização material e espiritual. Sobre seu trabalho,
A forma instiga e afeta o espírito, com impressões e sensações incômodas. É um convite à reflexão, à penetração profunda em sua verdade porque transcende à temporalidade do mero aparecer. A inteligência não seduz, porque tenta convencer. A obra de Bispo é um ato de vontade. Sem refletir a beleza fácil, convida ao saber. (SILVA, 2003, p.107)
Sua preocupação estética foi abordada na vanguardas, a partir de 1960. Sua importância foi além da produção artística, alcançou as imagens do inconsciente e trouxe à tona a ideia da Terapia Ocupacional, prática inimaginável, para a época. A valorização do trabalho de Bispo coincidiu com novas teorias sobre a loucura, em 1980, e seus trabalhos passaram a integrar os circuitos de Arte. Em 1995, várias peças do artista representaram o Brasil, na Bienal de Veneza, obtendo reconhecimento internacional. Atualmente sua obra é referência para a Arte Contemporânea.
A originalidade de seu trabalho acabou por servir de inspiração a outro artista, o Leonilson (1957-1993) (Fig. 7), que entrou em contato com a obra de Bispo em 1990, no Museu de Arte Contemporânea da USP (São Paulo). Nascido em Fortaleza, Ceará, Leonilson mudou-se para São Paulo em 1961; estudou na Escola Panamericana de Arte e, em 1977 ingressou na Fundação Álvares Penteado, no curso de Artes Plásticas. Em 1980, abandonou o curso, para entrar definitivamente no panorama da Arte Contemporânea Brasileira. Destacou-se inicialmente pelas pinturas Pop, nos anos 80; e passou a produzir obras com um sentido mais profundo, nos anos 90. Além de pinturas e desenhos, o artista produziu esculturas, instalações e bordados. Embora Bispo e Leonilson não tenham se conhecido pessoalmente, suas obras estão ligadas pelo fiar de pontos do bordado infindável; ligam-se ainda pelo colecionismo de materiais cotidianos; pela simbologia de seus trabalhos; e pelas repetições. Os estados de alma de Leonilson são marcantes em sua obra. Seus traços revelam uma postura romântica e inconformista diante do mundo, por meio de uma linguagem intimista. Seu trabalho, à semelhança de um diário pessoal, revela frases, palavras, formas orgânicas e desenhos bordados sobre tecidos puídos, desgastados. Sua última obra, de 1993, foi uma instalação na Capela do Morumbi, em São Paulo, e deixa uma mensagem sobre a efemeridade da vida. O artista morreu muito jovem, mas deixou obras de admirável intensidade poética.
Sob a curadoria de Ricardo Resende, o SESC de Sorocaba apresenta um encontro desses dois artistas, por meio de 50 obras, que podem ser vistas de 18 de setembro a 29 de novembro, no espaço de exposições. Estão presentes nessa mostra, os bordados, como forma de representação artística e de exteriorização de sentimentos, que a ambos foi comum.
Das trajetórias de Bispo e de Leonilson, ficam seus pensamentos, suas angústias. De Bispo, a pobreza, a marginalização, os problemas mentais e o sofrido confinamento. De Leonilson, a interrupção da vida, pelo HIV, e a proximidade da morte. De ambos, a longa e interminável espera e a genialidade que se rebelou num fazer artístico libertador, desimpedido, que acabou por reclassificar o transitório, eternizando-o, por meio da palavra.
1 Documentário gravado na Bienal de São Paulo, 2012, Oscar D’Ambrósio
www.youtube.com/watch?v=t6Jou6DlEek
2 Série Vídeo – Cartas – Fernando Gabeira
Arthur Bispo do Rosário www.youtube.com/watch?v=ISt22V1U-hY
3 Penélope era filha de Ícaro e de Periboea. Era casada com Ulisses, que partiu para lutar na Guerra de Troia e, por muito tempo, Penélope não recebeu notícias dele. Querendo que sua filha se casasse novamente, Ícaro a apresentou a vários pretendentes. Penélope não podia contrariar o pai, mas queria esperar seu marido. Então aceitou a corte dos pretendentes, com a condição de somente se casar, após terminar o sudário que faria para o pai de Ulisses, adiando assim, o novo casamento. Tecia então durante o dia, e à noite, desmanchava a trama. Após vinte anos, Ulisses retornou para sua esposa, vestido de mendigo e se vingou dos pretendentes de Penélope. (KURY, 2008, p.315)
Poema Loucos e Santos declamado por Antônio Abujamra:
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Confira os vídeos da visita de Rosângela Vig a exposição:
Serviço: |
Exposição “Arthur Bispo do Rosário e Leonilson: Os Penélope” |
Evento de abertura: 17 de setembro, às 20h. |
De 18 de setembro a 29 de novembro. Terça a sexta, das 9h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. |
Local: Sesc Sorocaba, espaço de exposições, rua Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade |
Classificação: livre |
Valor: gratuito |
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Referências:
SILVA, Jorge Anthonio e. Arthur Bispo do Rosário Arte e Loucura. São Paulo: Ed. Quaisquer, 2003.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
PESSOA, Fernando. Mensagem – Obra Poética I. Porto Alegre: Ed. L & PM, 2006.
ROSÂNGELA VIG
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Parabéns para SESC – Sorocaba pela Exposição “Arthur Bispo do Rosário e Leonilson: Os Penélope”, e para a Professora Rosângela Vig pela ótima apresentação!!!
Teruko Okagawa Monteiro, criadora de documentos/monumentos
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