Você também pode ouvir esse artigo na voz da própria Artista Plástica Rosângela Vig:
O Grafite
A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da Arte, sendo a outra metade, o eterno e o imutável. Houve uma Modernidade para cada pintor antigo: a maior parte dos belos retratos que nos provêm das épocas passadas está revestida de costumes da própria época. São perfeitamente harmoniosos; assim, a indumentária, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (…) formam um todo de completa vitalidade. Não temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da única mulher antes do primeiro pecado. (BAUDELAIRE, 2007, P.26)
Em meio à monocromia da cidade, o artista, num ímpeto criativo, fez das paredes e dos muros, sua tela e, sem cerimônia, tingiu com sinais de vida, o que antes era concreto inanimado. O grafite artístico emerge como um alento à aspereza urbana, ameniza a frieza do concreto; distrai os olhares perdidos da turba desenfreada entrando e saindo dos transportes; e sobretudo propõe conjecturas. As cores permitem um equilíbrio transitório à mente em constante ebulição pelo estresse da cidade grande e pelas obrigatoriedades do dia. Nesse ponto, o urbano adquire um caráter poético. O imutável é a vida, a Arte está somente de passagem, é fugidia em suas mutações e acompanha a própria evolução da mente humana.
O artista da rua deixa seu registro e se eterniza diante de uma atualidade afobada. Ao espectador, o que era antes uma simples parede, é agora o retrato de um tempo antigo (Fig. 1) e é possível que se dialogue com esse tempo. As pessoas da imagem olham atônitas para o cenário que a atualidade lhes oferece. Oscar Niemeyer (Fig. 2), de olhos abertos, contempla reflexivo, com um sorriso enigmático, a metrópole que vê, diante de seus olhos. Talvez a ele, a cidade não seja tão bela como gostaria. Pode-se contemplar um animal fantástico (Fig. 3) que emerge de uma parede inerte e que parece voar em meio aos carros apressados, próximo a um farol, na esquina da rua da Consolação em São Paulo.
O termo Arte Urbana ou Arte de Rua refere-se às manifestações artísticas que ocorrem em espaços públicos. O grafite, como uma das primeiras formas de Arte Urbana, surgiu entre 1960 e 1970, nas ruas da Filadélfia. Esse novo modelo de Arte, “ilegal”, teve campo em Nova York, principalmente nos transportes coletivos e no metrô. Os grafiteiros no início, combatidos pela polícia, como vândalos, usavam as latas de tinta spray para criar letras bem elaboradas coloridas e muito grandes (Fig. 4), que eram a marca registrada de seus próprios nomes. Com o tempo, as letras se tornaram mais complexas, com novos formatos e se misturavam a belos desenhos coloridos (Fig. 5), muitos de cunho social. Os trabalhos, inspirados na Arte Pop de Roy Lichenstein 1 (1923-1997) e na cultura popular, acabaram por conquistar espaço. Alguns grafiteiros, como Keith Haring 2 (1958-1990) e Michel Basquiat 3 (1960-1988), saíram da clandestinidade e se tornaram conhecidos no mundo da Arte Contemporânea. Em Nova York, Haring chegou a ser preso por seu famoso mural “Crack é uma droga” (Crack is Wack), no qual o artista demonstrava sua repulsa pela falta de atitude do governo, quanto ao aumento do uso da droga na cidade. Seu mural chegou a ser apagado, mas devido à repercussão do fato, foi permitido a Haring refazê-lo.
No final da década de 90, o grafite assumiu novos formatos, adquirindo um caráter figurativo, com o uso de adesivos, de estênceis e de cartazes, o que facilitaria a produção e possibilitaria uma compreensão mais rápida, por parte do público. Nessa fase do grafite, evidenciaram-se, entre outros, Banksy 4 (Fig. 6) e Barry McGee (1966-). No Brasil, cabe destaque para Eduardo Kobra, como referência nessa Arte. Nascido na cidade de São Paulo, o artista começou a se tornar conhecido em 1987 e atualmente tem murais conhecidos na cidade onde nasceu, e pelo mundo 5. Estão entre seus temas, personalidades como Oscar Niemeyer, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá, Abraham Lincoln e John Lennon. O artista ainda trata questões como o meio ambiente, em seu projeto Greenpincel, cujas imagens fortes, deixam em evidência seu repúdio por atos contra a natureza, em todas suas formas. A marca registrada de sua Arte é o uso de cores vibrantes, mescladas a formas geométricas, em meio a figuras de celebridades e cenas urbanas. Seus murais, espalhados por cidades do Brasil e do mundo, são inconfundíveis e, mais que proporcionar os sentimentos prazerosos pela veia do Belo, sua Arte questiona de um modo inteligente e induz a pensamentos aprofundados.
Vale lembrar que o grafite, como Arte, tem fundamento, trabalha com o intelecto, é belo e ameniza a dureza da vida urbana, diferentemente de pichações (Fig. 7), que não tem nenhuma ligação com a Arte, e que são totalmente reprováveis, por sujarem a cidade e por danificarem patrimônios públicos e particulares.
O grafite viabilizou a artistas populares, de talento indiscutível se destacarem junto às vanguardas contemporâneas e no meio artístico. E, mais que isso, o estilo levou a própria Arte para a rua, por meio de um Belo com sentido intelectual, sobre temas atuais e muitas vezes, contundentes, despertando críticas e provocando discussões.
1 Roy Lichenstein
www.lichtensteinfoundation.org
2 Keith Haring
www.haring.com
3 Michel Basquiat
www.basquiat.com
4 Banksy
www.banksy.co.uk
5 Kobra – vídeo Globo em Nova York
g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/10/eduardo-kobra-cria-obra-de-arte-de-rua-em-muros-de-bairro-em-nova-york.html
Nossos Agradecimentos ao Artista Eduardo Kobra
Website | Muros da Memória | Painéis Green Pincel
Vídeo sobre o Kobra:
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Referências:
- BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade, 6ª. ed., São Paulo, Editora Paz e Terra, 2007.
- BAYER, Raymond. História da Estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. Tradução de José Saramago.
- FARTHING, Stephen. Tudo Sobre a Arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
- GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
- HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Martins Fontes, São Paulo, 2003.
- KANT, Immanuel. O Belo e o Sublime. Pôrto: Livraria Educação Nacional Ltda., 1942.
- SCHILLER, Friedrich Von. A Educação Estética do homem. 4a. edição. S.Paulo: Ed. Iluminuras, 2002.
As figuras:
Fig. 1 – Muros da Memória. Eduardo Kobra.
Fig. 2 – Mural de Eduardo Kobra na Avenida Paulista, de 2013, retrato do arquiteto Oscar Niemeyer. No trabalho pode–se ver referências a várias obras de Niemeyer, como o Palácio do Planalto, a Pampulha e o Museu Oscar Niemeyer. Foto de Alan Teixeira.
Fig. 3 – Muro de viaduto na esquina da rua da Consolação em São Paulo, foto tirada em 2013, pichação em meio à Arte. Foto de Rosângela Vig.
Fig. 4 – Arte Urbana na Parede. Letras bem elaboradas coloridas e muito grandes. Foto de acidminde.
Fig. 5 – Arte Urbana na Parede. Belos desenhos coloridos. Foto de Fernando Cortés.
Fig. 6 – Bansky, artista de rua britânico com trabalhos em Bristol, Londres e em várias cidades do mundo. Foto de Toniflap.
Fig. 7 – Pichações. Foto de okanakdeniz.
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