“Kandinsky: tudo começa num ponto” por Rosângela Vig

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Rosângela Vig é Artista Plástica e Professora de História da Arte.

Kandinsky: Tudo começa num ponto

O azul, o azul subiu, subiu e caiu.
O pontudo, o fino sibilou e se fez intruso, mas não o trespassou.
Em todos os recantos a coisa ressoou
O castanho espesso ficou suspenso aparentemente por toda a eternidade.
Aparentemente. Aparentemente.
(KANDINSKY, 1991, p.163)

Igreja Vermelha, 1901-1903, Óleo sobre compensado de madeira, Museu Estatal Russo.© Kandinsky, Wassily.
Igreja Vermelha, 1901-1903, Óleo sobre compensado de madeira, Museu Estatal Russo.© Kandinsky, Wassily.
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Pode ser que as cores tenham sussurrado ao pé do ouvido de Kandinsky 1 (1866-1944). E ele soube ouvi-las, muito bem. Delas escutou os sons, as melodias e as intenções. E o artista se deixou levar por tamanho encantamento e por tanta poesia. Em pequenos sopros, as cores foram, aos poucos tingindo de colorido leve, cada forma, cada pedacinho de sua Arte. A sensibilidade é capaz de ajustar o olhar para tamanha beleza e encanto, porque há música em sua Arte. As cores murmuram uma doce melodia, em meio a formas e a linhas. Entre os espaços vazios, pode-se sentir a música pausar seu estribilho, para continuar novamente com novas notas e com novos refrãos. Sua Arte tem espírito.

Mais de 150 obras e objetos do artista e de seus contemporâneos podem ser vistos na Exposição “Tudo Começa num Ponto”, apresentada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo, até o dia 28 de setembro. A exposição mostra a trajetória do precursor do Abstracionismo, Wassily Kandinsky e a base da coleção, são obras de grandes museus, como o Museu Estatal Russo, de São Petersburgo, além de obras de mais sete museus da Rússia e de coleções da Alemanha, da Áustria, da Inglaterra e da França.

Dividida em blocos, a mostra apresenta as influências do folclore russo e da cultura popular, em sua obra; um pouco do universo do Xamanismo, do Norte da Rússia; a vida do artista, na Alemanha, e o grupo Blaue Reiter 2, inspirado no Expressionismo; a vida do artista em Murnau (Alemanha); a influência da música em sua Arte, da amizade com Schönberg; e o início da abstração, com seus contemporâneos.

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A obra de Kandinsky passa pelo campo das cores, herdado de sua Rússia, de sua Cultura e das recordações da infância, que marcaram profundamente sua alma. Conforme diz,

As primeiras cores que me causaram grande impressão foram o verde-claro e cheio de seiva, o branco, o vermelho-carmim, o preto e o amarelo ocre. Essas lembranças remontam a meus três anos. Vi essas cores em diferentes objetos eu hoje não visualizo tão claramente quanto as próprias cores. (KANDINSKY, 1991, p.69)

Murnau, Paisagem estival, 1909, Estudo para o quadro “Casas na Montanha”, Óleo sobre cartão, Museu Estatal Russo. © Kandinsky, Wassily.
Murnau, Paisagem estival, 1909, Estudo para o quadro “Casas na Montanha”, Óleo sobre cartão, Museu Estatal Russo. © Kandinsky, Wassily.

E seria maravilhoso se a todos, as cores exercessem tal feitiço. Seu fascínio pela cor já era notado em sua fase figurativa, mas ficou evidente em seus trabalhos abstratos e revelam a influência do Fauvismo. Elas estavam no colorido da Rússia em que o artista viveu; na poesia das histórias que ouviu, quando criança e no folclore que tanto o encantou. A pintura de Kandinsky ainda passa pelo campo da Música, que seus pais tanto apreciavam e com a qual o artista conviveu, desde a infância. Ele mesmo chegou a ter aulas de piano e de violoncelo. E teria sido professor de Direito, se não fosse uma viagem que fez a Moscou, que mudou o rumo de sua carreira. Lá, teve a oportunidade de ver uma exposição dos impressionistas e a ópera de Wagner, a que assistiu, dias depois. Compreendeu então, que poderia demonstrar sentimentos por meio da Arte e decidiu que se tornaria pintor. A mudança para a Alemanha, para estudar Pintura, o levou em contato com um concerto de Schönberg, com quem travou grande amizade, e que distinguiria seu abstracionismo.

Do amadurecimento de seu trabalho, emergiu a ligação com a música, principal inspiração de seu estilo pictórico, que espiritualizou o conjunto de sua obra. Conforme disse,

Um pintor, que não encontra satisfação na mera representação, ainda que seja artística, em seu desejo de expressar seu interior, não pode deixar de invejar a facilidade com que a música, a mais imaterial mais das artes, alcança esse objetivo. Ele naturalmente procura aplicar os métodos de música em sua própria arte. E isso resulta no moderno desejo de ritmo na pintura; de construção abstrata matemática; de notas repetidas de cor; de cenário da cor em movimento. (KANDINSKY, 1977, p.19) 3

Improvisação número 11, 1910, Óleo sobre tela, Museu Estatal Russo. © Kandinsky, Wassily.
Improvisação número 11, 1910, Óleo sobre tela, Museu Estatal Russo. © Kandinsky, Wassily.

Para o artista, a Pintura pode suscitar as mesmas impressões que a Música e sensibiliza o espectador, levando-o à percepção de sonoridade, por meio do conjunto visual. Em seu livro “Do Espiritual na Arte” 4, Kandinsksy definiu sua série de “Improvisações”, como expressões inconscientes, de caráter interior e espontâneo, comparado à improvisação da própria Música. Nessa série de pinturas, os elementos figurativos interagem com os abstratos, em meio a cores e a linhas. Para ele, a cor provoca vibrações que tocam profundamente a alma. As obras da série Composições, deixam claro esse trabalho cuidadoso. A ligação com a música se aprofunda, e a sonoridade se torna mais intensa, por haver uma ruptura com o objeto e com a figuração que é a Arte representativa da realidade. Para ele, “o observador deve aprender a olhar o quadro como a representação gráfica de um estado de espírito, e não como a representação de determinados objetos” (KANDINSKY, 1991, p.167).

Muito além dos meios, da técnica e da cor, essa ligação com a Música, no abstracionismo de Kandinsky, suscita profunda espiritualidade. Conforme diz,

Gostaria de acrescentar que nos entregamos ao trabalho com um espírito ainda mais alegre, um ardor ainda mais sereno, quando vemos que existem também outras possibilidades na Arte (e elas são inumeráveis) que podem ser aproveitadas com toda a razão (ou com maior ou menor razão). No que me concerne pessoalmente, amo toda forma nascida necessariamente do Espírito, criada pelo espírito. (KANDINSKY, 1991, p.103)

Observar sua obra é perceber esses códigos sensíveis, por meio de suas cores vivas e de suas formas dinâmicas que parecem se mover intensa e incessantemente sobre a tela, com ritmos, com pausas. Elas transcendem de forma compassada e deixam à mostra, o interior, marca registrada do estilo do artista. A ruptura com a figuração, permitiu ao artista trabalhar livremente o pensamento, mas seu trabalho é prudente e calculado, na distribuição das cores e das formas.

Alunos do Colégio Veritas, Sorocaba, na exposição do Centro Cultural Banco do Brasil.
Alunos do Colégio Veritas, Sorocaba, na exposição do Centro Cultural Banco do Brasil.

Os códigos de Kandinsky maravilharam os alunos do sexto ano, do colégio Veritas, em visita à mostra, que compreenderam a musicalidade das obras. Mais que visitar as pinturas, as crianças tiveram ainda a oportunidade deliciosa de penetrar nas telas, em pleno movimento, por meio dos óculos 3D, que são fornecidos aos visitantes.

Detalhes do teto do hall de entrada do Centro Cultural Banco do Brasil.
Detalhes do teto do hall de entrada do Centro Cultural Banco do Brasil. Foto: Rosângela Vig.

A beleza da exposição se completa com a grandiosidade do prédio do Centro Cultural do Banco do Brasil, considerado um ícone da Arquitetura, do século passado. Localizada no centro de São Paulo, a construção de 1901, é a quinta instituição cultural mais visitada do país e encanta pelo design, que remete a tempos antigos, em seus vitrais e nas escadarias.

Passear pelas obras de Kandinsky é marchar por uma melodia e perambular por um poema. Como não se encantar?
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Inclinem vosso ouvido para a Música, abram vossos olhos à Pintura. E … não pensem! Examinem-se, se assim o quiserem, depois de ter ouvido e depois de ter visto. Perguntem-se, se assim o quiserem, se esta obra vos fez passear por um mundo que vos era anteriormente desconhecido. Se sim, que mais querem ainda? (KANDISNKY, 1970, p.79)

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Alunos do Colégio Veritas, Sorocaba, na Exposição de Kandinsky no Centro Cultural Banco do Brasil:

Crédito Fotos: Rosângela Vig.

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Notas:

1 Wassily Kandinsky – site:
www.wassilykandinsky.net

2 Cavaleiro Azul

3 A Painter, who finds no satisfaction in mere representation, however artistic, in his longing to express his inner life, cannot but envy the ease with which music, the most non-material of the arts today, achieves this end. He naturally seeks to apply the methods of music to his own art. And from this results that modern desire for rythm in painting, for mathematical, abstract construction, for repeated notes of colour, for setting color in motion. (KANDINSKY, 1977, p.19)

4 Concerning the Spiritual in Art

Referências:

FARTHING, Stephen. Tudo Sobre a Arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

KANDINSKY. Concerning the Spiritual in Art. New York: Dover Publications, 1977. (Sobre o Espiritual na Arte)

KANDINSKY. Olhar sobre o Passado. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1991.

KANDINSKY. O futuro da Pintura. Portugal: Edições 70, 1970.

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